quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

E tanta razão têm eles para se calar por FERREIRA FERNANDES

O cinema não foi inventado por juristas portugueses e, por isso, começou por ser mudo. Começou em 1888, com Louis Aimé Le Prince, em Leeds, câmara focando o seu filho, os sogros e uma senhora, em cena de dois segundos? Ou começou em 1895, com os irmãos Lumière, em La Ciotat, no Sul de França, com um jardineiro, um garoto e uma mangueira de jardim? Um ou outro começou o cinema, e ambos calados. O quarteto de Le Prince olha-nos de frente, dá largas passadas, quase dança, e tudo acaba silenciosamente, de costas. O jardineiro dos Lumière vai espreitar a boca da mangueira, admirado por não haver débito, e quando leva com um jato de água porque um miúdo deixou de pisar a borracha corre para o castigar... Nem uma palavra nos dois filmes e conta-se a elegância das gentes vitorianas, num, ou a comédia dos mediterrânicos, malandros e expansivos, noutro. O mais desconhecido entre os inventores da arte cinematográfica, esse Le Prince, levou o culto do silêncio à extrema demonstração: um dia de 1890, apanhou um comboio de Paris para Dijon e nunca mais foi visto, uma lápide de mistério caiu-lhe em cima até hoje. Mais mudo não podia ser. O filme O Artista, que está aí para abocanhar Óscares, todo ele também calado, recupera o cinema desse passado. E lembro esse tanto dizer sem palavras, num dia, começo do ano judicial, em que fomos afogados por tantos discursos sem dizeres. A venda da Justiça deveria cair-lhes para a boca.

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